Predominância Branca Na Mídia Não é ‘Neutralidade’ Racial; ou, Como a raça branca se tornou raça ‘neutra’

Detalhe de “A Proclamação da Independência” de 1844, do pintor, fotógrafo e professor francês que se radicou no Brasil, François-René Moreaux (1807-1860). (Imagem: Reprodução/Internet) Joelza Ester Domingues, em seu site Ensinar História, analisa a obra:
“A multidão na frente do príncipe—crianças, mulheres e homens—pouco se assemelha à população brasileira. Parece-se mais com a população rural da Europa. Os personagens congratulam-se, acenam, trocam abraços, correm. É uma festa popular, mas sem negros, mulatos nem índios que não foram retratados na tela. Duas figuras morenas se destacam na multidão, mas é difícil reconhecer de que grupo social se trata”. (…) Todo conjunto remete mais à imaginação do que à realidade o que, aliás, é característico da arte romântica, em voga na época. Uma cena idealizada que mostra um príncipe aclamado pelo seu povo e cavalgando entre a massa popular branca e europeizada”.

Na indústria do entretenimento e comunicação, atitudes racistas são condenadas ainda que a presença de “corpos negros” em suas produções seja evidentemente mínima e, na maior parte, restrita a papéis secundários. Como resultado, quando negros atingem um certo grau de proeminência e visibilidade na mídia, manifestações racistas tendem a surgir.

No último dia 15 de julho uma foto promocional do programa do Faustão foi publicada na página do portal Gshow no Facebook. De acordo com o artigo de Ricardo Senra do portal BBC, “Dezessete mulheres louras, brancas, de cabelos lisos se enfileiram para a foto, como um time de futebol. Diz a legenda: ‘O concurso ‘Bailarina do Faustão’ tem mostrado a diversidade da beleza da mulher brasileira. Gatas para todos os gostos’”. O jornalista relatando a repercussão da foto na rede social, diz que a

“opinião de uma jovem de São Paulo sobre o caso ganhou destaque na página e rendeu, sozinha, mais de 9 mil curtidas: ‘Onde está a diversidade nessa foto?’, diz. ‘Por esse motivo e outros, que quando aparece uma pessoa negra nas programações da Globo acontece todo um movimento racista, porque na verdade não são todos Maju!’, conclui”.

O comentário da jovem paulistana não poderia ser mais preciso e exato. Já a produção do programa, ainda segundo a BBC, forneceu a seguinte resposta:

“‘[O] Domingão do Faustão, assim como toda a programação da Globo, repudia qualquer tipo de preconceito’ e que o objetivo do concurso ‘é ter um painel da mulher brasileira no corpo de balé”.

Semi-excluindo a população negra dos postos de visibilidade em suas produções ao exato mesmo tempo em que repudia “qualquer tipo de preconceito”, a indústria de comunicação e de entretenimento assume uma posição duvidosa e confusa em relação à sua preferência por profissionais brancos. Consequentemente, a predominância de profissionais brancos, em prática, torna estes profissionais em representantes da diversidade racial brasileira. Branco se torna o racialmente neutro.

Foto promocional do programa do Faustão publicada na página do Gshow no Facebook em 15 de julho de 2015. A legenda da foto diz: ‘O concurso ‘Bailarina do Faustão’ tem mostrado a diversidade da beleza da mulher brasileira. Gatas para todos os gostos’”. (Imagem: Reprodução/Internet).

Mas como explicar a ocorrência tão expressiva de tal fenômeno? Bem, neste texto queremos ser bem menos ambicioso e apenas refletir sobre a presença visual massiva de profissionais brancos nas produções televisivas e cinematográficas, e nas campanhas publicitárias.

O princípio da “neutralidade racial”—que não é somente um termo que soa bem aos ouvidos—ajuda no entendimento desta argumentação que tenta explicar a predominância branca na mídia ocorrendo através da representação da raça branca como raça “neutra”.

Como conceito, “neutralidade racial” surge nos Estados Unidos a partir do termo sociológico “Color” ou “Race Blindnes”, que literalmente significa “cegueira racial”. Ser “cego à raça” é não utilizar dados raciais e não fazer categorizações, distinções, e escolhas baseadas em raça—raça não existiria. Uma sociedade “racialmente neutra” trataria todos os indivíduos de maneira igual, o que levaria ao fim do racismo e da discriminação racial. Nas últimas décadas, o conceito de neutralidade racial vem sendo usado como argumento contrário à política educacional de ação afirmativa (cotas raciais) nos EUA.

No Brasil, o termo também ecoa no debate de cotas mas na forma de um ideal de orgulho nacional. Este orgulho se baseia na ideia de uma “transcendência racial”—termo que também soa bem aos ouvidos e que está intimamente ligado a ideia de “Democracia Racial”. Transcendência racial fortaleceria e legitimaria “a nossa consciência cívica”, a identidade nacional. Porém, Adilson José Moreira argumenta que a “referência à neutralidade racial como um aspecto descritivo da nossa sociedade está na raiz de uma narrativa responsável pela preservação da brutal desigualdade entre negros e brancos”—ou seja, a crença nacional de um país racialmente harmonioso, não significa uma sociedade racialmente igualitária na vida real.

Obviamente, o conceito de neutralidade racial não se limita ao debate sobre a ação afirmativa. Ele tem uma forte forma prática nas tomadas de decisões do dia-a-dia que tendem a favorecer a branquitude (identidade racial branca).

Ao abordar o verdadeiro significado do conceito, Barbara J. Flagg em seu ensaio “O Fenômeno da Transparência, da Tomada de Decisões, e do Intento Discriminatório” (1997), explica a branquitude como sendo uma “qualidade transparente”. Ou seja, os brancos não enxergam suas branquitudes quando interagem na ausência de pessoas de cor. Para a autora, tal fenômeno lança dúvidas sobre as tomadas de decisões baseadas na neutralidade racial. Barbara sugere que

“os brancos devem responder com grande desconfiança ao fenômeno da transparência no que diz respeito a neutralidade racial. (...) Uma vez que os brancos não estão cientes de suas branquitudes, é improvável que os brancos tomadores de decisões, similarmente não cometam o erro de identificar como racialmente neutras aquelas características pessoais, traços físicos e comportamentos que, de fato, estão intimamente associados com a branquitude”.

Sherry J. Williams, em seu artigo “Neutralidade Racial: O Que Isto Realmente Significa?” (2000), afirma que o fenômeno descrito por Barbara Flagg é frequente nos EUA. Usando o exemplo de uma juíza que advertiu contra o favorecimento racial quando políticos negros tomaram decisões que favoreciam comerciantes negros, Sherry argumenta que quando políticos brancos favorecem comerciantes brancos em suas tomadas de decisões, tais ações serão vistas como baseadas na “neutralidade racial”.

Na verdade, o não reconhecimento da construção da branquitude põe em cheque a própria possibilidade de se atingir a plenitude igualitária oferecida pelo conceito da neutralidade racial, considerando Sherry J. Williams, quando ela diz, “A fim de se atingir o plano mais elevado da neutralidade racial primeiro precisamos estar racialmente conscientes”.

Conclui-se que o conceito da neutralidade racial manifesta-se conflituosamente junto a ausência do reconhecimento e da construção da branquitude. Isto faz com que as decisões que mantêm a predominância de brancos na mídia brasileira possam também ser justificadas pelo discurso do mérito que, por tabela, desassocia tal predominância branca dos privilégios sócio-culturais pertencentes à branquitude—desassociação hoje frequentemente reforçada pela frase “somos todos iguais”.


Na mídia brasileira, porém, a neutralidade racial não é apenas um fenômeno pelo qual as decisões que privilegiam profissionais brancos são baseadas. Como mencionado anteriormente, ela também é uma fórmula de representação destes profissionais como indivíduos racialmente neutros.

Em seu livro sobre a visibilidade e representação do negro na teledramaturgia, “A negação do Brasil: O Negro na Telenovela Brasileira” (2000) (também em versão filme-documentário), o cineasta Joel Zito Araújo diz que “o não reconhecimento da construção de uma identidade de branquitude na sociedade brasileira é uma forma de reforçar o mito de sua neutralidade e esconder o seu poder”.

Este processo descrito pelo cineasta junto à ideia da “meta-raça” de Freyre, parece produzir a crença de que a identidade branca estaria exclusivamente baseada na mistura das raças. Isto faz com que os brancos acreditem poder pertencer legitimamente a um ou mais grupos raciais—algo ilustrado nas narrativas de “um pé na cozinha” e das bisavós índias pegas no laço pelos bisavôs.

Dentro deste contexto, a indústria de entretenimento e de comunicação constrói um projeto de representação da diversidade brasileira à partir do ideal de “Democracia Racial”—ainda bem estimado pela elite como uma identidade nacional. Engenhosamente, nesta representação neutra da branquitude, o corpo branco pode passar como corpo mestiço—moreno claro—fruto da “meta-raça” brasileira conceptualizada por Gilberto Freyre como sendo o resultado da miscigenação continuada entre as três raças (ameríndios, africanos e europeus).

O ideal criado por Freyre aparece nostalgicamente em “Não Somos Racistas” (2006), livro de Ali Kamel, diretor de jornalismo da rede Globo—uma das mais notórias publicações voltadas contra a implementação da política educacional das cotas. Embora ofereça argumentos para bons debates, o livro aqui se revela mais interessante enquanto a opinião de um “tomador de decisão” dentro de um dos maiores grupos de comunicação e de entretenimento do país.

O livro questiona a dimensão que é atribuída ao racismo no Brasil, apresentando o “classismo” como o principal obstáculo à educação de qualidade. Kamel argumenta que as cotas reduziriam o país a uma nação “bicolor” (brancos e não-brancos), eliminaria “todas as nuances características da nossa miscigenação” e causaria o “sumiço dos pardos e dos miscigenados nas estatísticas raciais brasileiras”. Kamel revela, apocalipticamente, seu medo de que a política de cotas possa dividir o país e promover “o ódio racial”. A obra também faz referência aos “estudos científicos que provam que raças não existem” para afirmar que “não pode haver tratamento desigual para seres humanos iguais”—aqui concordando diretamente com o conceito de “neutralidade racial”.

Como uma visão interna, “Não Somos Racistas” não explica a predominância branca na indústria de comunicação e entretenimento, mas ajuda no entendimento desta predominância de um modo geral. Neste sentido, vale lembrar que os tomadores de decisões, não enxergando as suas próprias branquitudes, como diz Barbara Flagg, erram ao “identificar como racialmente neutras aquelas características pessoais, traços físicos e comportamentos que, de fato, estão intimamente associados com a branquitude”—branquitude mesmo no caso da ascendência árabe de Kamel onde, no esquema racial brasileiro, a soma da cor da pele + traços físicos + comportamento tende a prevalecer sobre a ascendência étnica.

Deste modo, talvez seja possível afirmar que os tomadores de decisões na mídia brasileira privilegiam os profissionais brancos baseados em um vantajoso e incoerente conceito de “neutralidade racial”: eles não reconhecem suas branquitudes e assim ocultam o poder que estas carregam; rejeitam a existência científica da categoria “raça” ao mesmo tempo em que, “civicamente”, reconhecem e defendem a existência de múltiplas categorias raciais mistas; e refutam a amplitude dada ao racismo no Brasil e se posicionam contrários às práticas discriminatórias mesmo quando semi-excluem o negro dos postos de visibilidade.

Infelizmente, a incoerente predominância branca na mídia se torna uma fórmula pedagógica bastante nociva: com a ausência de negros em postos de visibilidade, o público aprende a aceitar o “corpo branco” como o padrão normal, neutro e único de representação racial, e como padrão de beleza, o que, consequentemente reforça o falso sentimento de uma superioridade (estética, moral e intelectual) branca:

Nayara Justino, coroada ex-Globeleza em 2014, em outubro daquele ano foi chamada de “feia” e “preta demais” nas redes sociais. Em novembro de 2014, uma usuária do Facebook escreveu, “Esta negra chata, vesga, gaguejando, na bancada do jornal é deprimente, fora Joice Sebastiana crioula, volta para o tronco”, referindo-se a Joyce Ribeiro, jornalista do SBT que já foi definida como “uma das raras faces negras no telejornalismo brasileiro”. Em junho deste ano, Kaik Pereira, o ator de 13 anos da novela “Chiquititas”, vivenciou violento abuso racial em seu perfil no Instagram:

Macaco preto safado, volta para a África. Mano, se mata. Você é negro, preto da macumba, imundo. Seu nojento. Você tem que morrer queimado.

Em julho último, a jornalista Maria Júlia Coutinho, nova face negra no horário nobre da TV, recebeu críticas racistas na página do Jornal Nacional no Facebook. “Só conseguiu emprego no JN por causa das cotas, preta imunda”. A lista se estende, sai das redes sociais, e inclui negros e negras não conhecidos do grande público.

A realidade mostra que a televisão nacional não conta com muitos jornalistas, apresentadores e atores negros em postos de evidência. As campanhas publicitárias muito pouco utilizam modelos negros. Nas produções cinematográficas atuais, a presença de negros (atores, diretores, roteiristas) é bastante diminuta. Tudo isto somado às piadas que apresentadores de televisão, sem pudor e sem desculpas, fazem sobre os cabelos das mulheres negras, torna-se uma eficaz aula de comportamento racista dirigida diariamente ao público.

Os atuais e bem frequentes episódios racistas são uma advertência aos tomadores de decisões dentro da indústria de comunicação e de entretenimento: predominância branca não é “neutralidade racial”. Ao contrário, a utilização do corpo branco como raça “neutra”, além de criar um cenário irreal do Brasil, é uma prática discriminatória que tem como único efeito a sua própria disseminação na sociedade.

c&p

Fonte: Sherry J. Williams, Race Neutrality: What Does It Really Mean?; Portal Forum; Ensaios de Gênero, “Meritocracia: críticas e dificuldades”; Revista Brasileira de Educação; Sinopse de “Não Somos Racista”, Editora Ediouro; Maria Laura Barbosa Caves, “O Negro Na Mídia Brasileira”; Adilson José Moreira, “Consciência Racial como Consciência Cívica”; O Negro na Publicidade e Propaganda Brasileira; gemaa-Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, UERJ, O Brasil das Telas de Cinema é Um País Branco; “Felipe Andreoli estreia no Encontro e comete gafe com Vanessa da Mata”; “Faustão, o ‘cabelo de vassoura de bruxa’ de Arielle e o silêncio da mídia”; “Após comentário sobre cabelo, internautas reagem e criticam Sílvio Santos”.

5 comentários:

  1. Belíssimo texto. Muito útil e esclarecedor, no mais amplo sentido da palavra. Clareou meus pensamentos e iluminou minhas ideias. Vi no texto a síntese do que penso sobre o assunto e uma fonte para futuras consultas e citações. Meu pensamento sobre a política de cotas e as políticas afirmativas em geral, oscilou muito no início. Fui do pensamento branco simplista de que "deveria haver cotas para pobres e não para negros" ao reconhecimento do racismo e de minha impotência e incapacidade absoluta de me colocar literalmente na pele que não habito. Não posso jamais saber como se sente nem o que passa um negro se não sou um. Posso no máximo imaginar. E imagino que não seja fácil. O mínimo que podemos fazer como sociedade é promover que as futuras gerações não precisem de cotas para equalizar o mundo.

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    1. Que bom que você tenha entendido e gostado do texto. Obrigado pelo comentário.

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  2. Também gostei do texto. Claro e conciso e fundamentalmente reflexivo e esclarecedor.

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  3. Obra para contribuir com a discussão no tema:

    MIRANDA, Jorge Hilton de Assis. Perspectivas de rappers brancos/as brasileiros/as sobre as relações raciais: um olhar sobre a branquitude. Salvador, 2015. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Universidade Estadual da Bahia – UNEB.


    Baixe a dissertação completa "Perspectivas de rappers brancos..." pdf

    (Via mediafire)
    http://www.mediafire.com/download/yz2diiaiei41hic/PERSPECTIVAS+DE+RAPPERS+BRANCOS+BRASILEIROS+SOBRE+AS+RELA%C3%87%C3%95ES+RACIAIS+-+UM+OLHAR+SOBRE+A+BRANQUITUDE


    (Via academia.edu)
    https://www.academia.edu/19946731/PERSPECTIVAS_DE_RAPPERS_BRANCOS_AS_BRASILEIROS_AS_SOBRE_AS_RELA%C3%87%C3%95ES_RACIAIS_um_olhar_sobre_a_branquitude



    (Via slideshare)
    http://pt.slideshare.net/JorgeHilton1/perspectivas-de-rappers-brancosas-brasileirosas-sobre-as-relaes-raciais-um-olhar-sobre-a-branquitude?utm_source=slideshow&utm_medium=ssemail&utm_campaign=post_upload_view_cta

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    1. Muito legal! Obrigado pelas indicações de leitura e nos desculpe pela demora em agradecer.

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