O Alfinete: Uma Antiga Arma Feminina Contra o Assédio Sexual


Walter Hunt (1785-1859), inventor do alfinete. “Mecânico e prolífico inventor estadunidense nascido em New York, New York, que patenteou mais de 100 inventos. Cresceu, morou e trabalhou em New York e foi o inventor da primeira máquina de costura americana prática (1834), também da primeira máquina de costura com agulha furada na ponta, do alfinete de segurança, de uma caneta-tinteiro, de um modelo de bala, de um rifle de repetição Winchester, de um fiandeiro de linho, de um amolador de facas, de um sino de bonde, de um fogão a carvão, de uma pedra artificial, de um velocípedes e de várias outras máquinas, instrumentos e ferramentas. Na realidade o mecânico autodidata de New York nunca auferiu significativas quantias com seus inventos, sempre vendendo seus direitos por pouco dinheiro ou por alguma oferta de ocasião. Por exemplo, seu alfinete de segurança, aquele usado para firmar fraldas de pano em crianças pequenas, foi inventado enquanto estava torcendo um pedaço de arame, e para pagar integralmente uma dívida de quinze dólares, vendeu a patente para a A. Meyers & Sons Corp., uma fábrica de New York, USA, por apenas quatrocentos dólares (1849)”. (Fonte: Universidade Federal de Campina Grande-Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, UEAC; Imagem: Reprodução/Internet, Stuff of Genius)

Ao contrário do quê muitos machos sexualmente descontrolados possam acredtiar, assim como outras partes do corpo humano, a genitália masculina também é perfurável. E quando isso acontece, com certeza, dói pra caralho. Talvez por esta razão, por mais de um século o alfinete vem sendo a resposta feminina contra o assédio sexual nos meios de transporte público.

Nesta primeira metade de 2014, a discussão sobre um antigo tipo de comportamento social revoltante foi reacendido no Brasil: A contínua ocorrência do assédio sexual contra mulheres dentro do transporte público no país. Um vídeo gravado por um passageiro de um ônibus em Vitória, Espírito Santo, viralizou-se, por um breve momento, por todas as esferas midiáticas mostrando um sujeito que após se roçar contra as nádegas de uma passageira, pôs o pau para fora através do bolso de sua calça, e o esfregou no bolso traseiro da calça jeans daquela passageira. E, atenção para o detalhe, logo após colocar seu “membro” de volta ao local de onde ele nunca deveria ter saído, o sujeito usa a mesma mão (ensebada) para segurar a barra de apoio do ônibus—atitude duplamente repulsiva, digamos.

Mas algumas pessoas ainda poderiam se perguntar, “Como isto pode ainda acontecer nos dias de hoje?”, ou mesmo, “Por quê isso acontece?”

No dia 28 de março deste ano, uma breve matéria de Clarissa Neher, publicada no site alemão de notícias Deutsche Welle-DW, “Polêmica sobre assédio no transporte público reflete problema maior”, abordou a face principal deste tipo de atitude: a cultura machista brasileira. Ela escreveu, “Somente neste ano, já foram registrados 29 casos na cidade de São Paulo. Em 2013, foram cem denúncias do tipo—um número que pode ser maior, já que muitas vítimas se calam. O problema já levou Rio e Brasília a criarem vagões exclusivos para mulheres. Outras cidades, como Belo Horizonte, cogitam fazer o mesmo”.

E certamente ela não poderia deixar de mencionar o resultado da pesquisa “Tolerância Social à Violência Contra a Mulher”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), publicada com alvoroço em 27 de março deste ano. Clarissa diz que a pesquisa “mostrou que a sociedade brasileira ainda mantém opiniões machistas e acha que o comportamento da mulher tem influência no número de abusos”. Quem leu o relatório da pesquisa concordararia com um melhor título: “A Perpetuação do Sistema Patriarcal na Cultura Brasileira”, a qual ainda hoje impõe a supremacia masculina, inclusive fora do lar.

E por causa de ocorrências como as da imagem do passageiro de ônibus pervertido de Vitória, manobras de prevenção foram imaginadas, tais como projetos de conscientização e programas educacionais, treinamento etc. (Em março, o cúlti & pópi, relativamente, abordou a questão sob o ângulo da “educação” dada por mães e pais aos seus filhos em nossa postagem no dia internacional da mulher).

Mas uma estratégia de autodefesa em particular, foi implementada com o intuito de mostrar que a questão “é mais em baixo”: A reintrodução do alfinete como arma contra os “acochadores”, termo usado hoje em dia para designar homens sexualmente descontrolados que habitam os ônibus e vagões de trem. “Grupo feminista distribui alfinetes para ‘assegurar o direito de autodefesa das mulheres’ contra os recorrentes casos de abusos registrados no transporte público”, escreveu Marina Pinhoni em seu artigo “Alfinete vira arma contra ‘encochadores’ do metrô”, publicado na Revista Exame em 4 de abril deste ano.

Obviamente, este comportamento masculino não é único do Brasil e nem mesmo uma nova tendência deste século. Assim como o uso do perfurante objeto enquanto defesa feminina, também não o é.

Em abril deste ano, a revista online do Instituto Smithsonian publicou um artigo de Karen Abbott que ilustra o fato de que a relação do alfinete com o assédio sexual, é na verdade, uma antiga relação. Em seu artigo, Karen também nos relata algumas das reverberações e consequências desta estratégia no início do século 20 com um foco no debate da questão nos Estados Unidos. Então, segue a nossa tradução deste bem interessante artigo.

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“Um perigo crescente nas multidões urbanas coloca uma lista alarmante de acidentes lado-a-lado ao longo histórico de agressões cometidas com a arma mortal feminina”, diz um jornal do início do século 20.
(Image: Reprodução/Internet, Smithsonian.com).

“O Alfinete de Chapéu” Aterrorizou os Homens Que Não Puderam Lidar Com a Mulher do Século 20”
Para se protegerem de avanços indesejáveis, as mulheres urbanas se protegeram com os longos e afiados acessórios

Por Karen Abbott, publicado originalmente em inglês no Smithsonian.com em 24 de abril, 2014

Na tarde de 28 de maio de 1903, Leoti Blaker, uma jovem do estado do Kansas que visitava a cidade de Nova York, embarcou em uma diligência da linha 5a. Avenida em direção a rua 23, assim iniciando o seu passeio. A carruagem estava lotada, e durante uma chacoalhada a jovem notou que o homem que estava próximo a ela havia se aproximado uma polegada a mais. Ela fez uma silenciosa avaliação: idoso, vestido elegantemente, “aparência benevolente”. E o cavalo pegou velocidade fazendo a carruagem dar um salto e lançar os passageiros de encontro uns aos outros. A esta altura o homem já estava encostado na jovem, cintura à cintura, ombro a ombro. Quando ele levantou seu braço e o alinhou relativamente baixo, ao longo das costas da jovem, Leoti perdeu a paciência. Em um movimento que estremeceria as vítimas de assédios no metrô dos dias de hoje, ela alcançou o seu alfinete de chapéu—de quase 30 centímetros—e o enfiou na carne do braço do homem. Ele soltou um grito terrível e saiu da diligência na primeira parada.

“Ele era um velho cavalheiro de aparência tão agradável que eu lamentei por tê-lo machucado”, ela disse ao jornal New York World (O Mundo de Nova York). “Eu já tinha ouvido falar dos amassadores da linha Broadway e dos amassadores da linha ‘L’, mas não sabia que a linha 5a. Avenida tinha o seu próprio tipo específico de amassadores… Se as mulheres novaiorquinas estão dispostas a tolerar amassamentos, as garotas do Kansas não estão”.

Jornais de todo o país começaram a relatar encontros similares com os “amassadores”, uma gíria daquela época para o homem lascivo ou predatório (mais delicadamente definido no romance ‘Sister Carrier’, de Theodore Dreiser, como aqueles homens “cujas vestimentas e os modos são calculados para obter a admiração de moças vulneráveis”). Uma dona de casa de Nova York se defendeu de um homem que se esfregou nela em um bonde lotado na Columbus Avenue e que depois a perguntou se poderia “ver a casa dela”. Uma dançarina de cabaré de Chicago, incomodada pelas “perguntas insultantes” de um amassador, bateu na cara dele com seu guarda-chuva até ele sair cambaleando. Uma professora de St. Louis afastou um homem que quase a atacou, abrindo um talho na cara dele usando o seu alfinete de chapéu. Tais estórias foram notáveis não somente pela frequência, mas também pelo tom laudatório que elas apresentavam; pela primeira vez, mulheres que reagiram contra seus assediadores eram consideradas heroínas ao invés de personagens cômicas, elas foram consideradas sujeitos ao invés de objetos. A sociedade estava se transformando, devagar mas definitivamente, do esperar e defender a independência feminina do homem para o reconhecimento do desejo e habilidade delas de se auto defenderem.

Ilustração do jornal San Francisco Sunday Call, de 1904, que mostra uma mulher usando tática de autodefesa com seu alfinete de chapéu.
(Imagem: Reprodução/Internet, Smithsonian.com).

As mulheres trabalhadoras e as sufragistas confiscaram o controle da conversa abrindo a boca contra os amassadores, louvando o direito das mulheres de circularem livremente—e sozinhas—em público. E aquilo era verdade, como a assistente social Jane Addams se manifestou sobre o fato de que “nunca antes na civilização tantas jovens moças foram repentinamente liberadas da proteção do lar e assim permitidas a andarem desacompanhadas nas ruas das cidades e a trabalharem sob o telhado alheio”. Os rituais de namoro e os costumes sexuais estavam mudando. Um homem não mais se apresentava à sala de estar de uma moça e a cortejava sob a vigilância de seus pais, mas a levava para um show ou a um salão de baile onde todos os comportamentos nocivos espreitavam. As sufragistas rejeitaram a noção desenvolvida pela Comissão de Imoralidade de Chicago (Chicago Vice Commission), de que mulheres desacompanhadas deveriam se vestir o mais modestamente possível—sem bochechas maquiadas ou mostrando o tornozelo—a fim de evitar a atenção indesejada. A questão se situa não na moda do vestuário feminino ou no aumento das liberdades, uma sufragista combateu, mas sim na “mente vil do amassador”.

Ao invés de discutir com as sufragistas, alguns opositores tomaram uma abordagem mais sutil, contestando não a mudança de papéis da mulher mas sim o método de autodefesa preferido por elas: o alfinete de chapéu. Abundaram as fábulas de homens inocentes—não amassadores—tonando-se vítimas do “perigo do alfinete de chapéu”. Uma estudante de 19 anos de idade da cidade de Scranton, Pennsylvania, em uma brincadeira acabou golpeando o seu namorado e fatalmente perfurou o seu coração. Um jovem passageiro de um bonde em Nova York sentiu uma dor afiada atrás de sua orelha—uma picada acidental de um alfinete de chapéu de uma estranha—e dentro de uma semana, ele entrou em coma e morreu. Também em Nova York, uma centena de trabalhadoras de uma fábrica, todas empunhando alfinetes de chapéu, atacaram os policiais que deteram duas de suas companheiras por estarem supostamente fazendo discursos anarquistas. Até mesmo outras mulheres não estavam salvas do alfinete. No subúrbio de Chicago uma mulher e a amante de seu marido, sacaram seus alfinetes de chapéu, e andaram em círculos encarando uma à outra, no bom estilo duelo, até um policial acabar com a briga. “Estamos esperando pelo novo modelo importado do alfinete de chapéu Colt ”, um jornal opinou sarcasticamente, “ou o modelo do alfinete Smith and Wesson Rápida-Açao”. Por volta de 1909, o alfinete de chapéu era considerado uma ameaça internacional, onde os chefes de polícia de Hamburgo e Paris consideraram medidas para regulamentar o seu tamanho.

“Alfinetes de chapéu de aparência inocente”
(Image: Reprodução/Internet, The Bartitsu Society).

Em março de 1910, a câmara municipal de Chicago adotou a ideia, debatendo sobre um decreto que proibiria alfinetes de chapéu que fossem mais longos do que 9 polegadas [22.9 centímetros]; qualquer mulher pega em violação seria presa e sujeita a uma multa de $50. Os procedimentos na câmara, acrimoniosos desde o início, ficaram lotados com espectadores curiosos, homens e mulheres. “Se as mulheres decidirem usar cenouras e galos em suas cabeças, este é um problema delas, mas quando elas decidem usar espadas na cabeça, elas devem ser impedidas”, disse um partidário. Gritos de “Bravo!” vieram dos homens, e vaias foram lançadas pela plateia feminina. Nam Davis, que estava lá representando vários clubes de mulheres, pediu permissão para se dirigir ao comitê. “Se os homens de Chicago querem tomar os alfinetes de chapéu de nós, que eles tornem as ruas em um local seguro”, disse ela. “Nenhum homem tem o direito de me dizer como eu devo me vestir e o quê eu devo usar”.

Apesar do ardoroso discurso de Davis, o decreto foi aprovado com uma votação de 68 à favor e 2 votos contra. Subsequentemente, leis similares a esta foram aprovadas em várias outras cidades, incluindo Milwaukee, Pittsburgh, Baltimore e Nova Orleans. A dez mil milhas de distância, em Sydney, Austrália, sessenta mulheres foram para a prisão ao invés de pagarem as multas por usarem “armas letais” em seus chapéus. Até mesmo as damas conservadoras de Londres se recusaram firmemente a comprar protetores para a ponta de alfinetes.

“Este é mais um argumento para o voto feminino e uma outra dolorosa ilustração do fato de que os homens não podem disciplinar as mulheres”, argumentou a sufragista Harriot Stanton Blatch, uma das filhas de Elizabeth Cady Satanton. “Mulheres necessitam de disciplina; elas necessitam serem forçadas, senão guiadas, para fora de sua barbárie, mas as mulheres nunca deverão e nunca se submeterão à disciplina dos homens. Dê o poder politico às mulheres e as melhores dentre elas treinarão as não civilizadas, assim como os melhores homens treinaram o seu sexo”.

O furor sobre os alfinetes de chapéu diminuiu no início da Primeira Guerra Mundial, e morreu completamente quando o cabelo curto e o chapéu cloche entraram na moda—momento no qual emergiu uma nova “ameaça social”: a flapper [conhecida como ‘melindrosas’ no Brasil]. Não demoraria muito, é claro, para que os políticos deixassem de se preocupar com o quê as mulheres vestiam para prestarem atenção em como conseguir os votos delas.

Fontes:
Livros:

Estelle B. Freedman, Redefining Rape: Sexual Violence in the Era of Suffrage and Segregation (Redefinindo Estupro: Violência Sexual na Era do Sufragismo e da Segregação). Cambridge: Harvard University Press, 2013; Kerry Segrave, Beware the Masher: Sexual Harassment in American Public Places, 1880-1930 (Cuidado Com O Amassador: Assédio Sexual nos Espaços Públicos Americanos). Jefferson (TX): McFarland & Company, 2014.

Artigos:

“Are Long Hatpins a Public Menace?” (Os Longos Alfinetes de Chapéus São Uma Ameaça Pública?). Anaconda (MT) Standard, March 1, 1910; “Would Regulate Size of Hat Pins” (O Tamanho dos Alfinetes de Chapéu Seriam Regulamentados). Duluth News-Tribune, March 1, 1910; “Women Defending the Long Hat Pin” (Mulheres Defendem os Longos Alfinetes de Chapéu). Grand Forks Daily Herald, March 1, 1910; “Ware the Hatpin; It’s Now Called a Public Peril” (Cuidado com os Alfinetes de Chapéu; Agora Eles são Chamados de Perigo Público). Cleveland Plain Dealer, September 5, 1909; “The Hatpin As a Weapon” (Alfinete de Chapéu Como Uma Arma). Harrisburg Patriot, April 16, 1908; “Hatpin Brings Death” (Alfinete de Chapéu Traz a Morte). Daily Record-Miner (Juneau, AK), August 26, 1908; “Woman Routs Robbers” (Mulher Derrota Ladrões). Cleveland Plain Dealer, August 29, 1909; “Stuck Hatpin Into a Masher” (Enfiou Alfinete de Chapéu em um Amassador). New York World, May 27, 1903; “Pointed Reminder of Hatpin Days” (Importante Relembrar os Dias do Alfinete de Chapéu). New York Times, December 24, 1944; “Women's Handy Weapon Against Thieves” (A Arma das Mulheres Contra os Ladrões). New York Tribune, February 7, 1904; “Spurn Hatpin Protectors” (Desdenhando os Protetores do Alfinete de Chapéu). New York Times, April 26, 1914.


Karen Abbott é uma escritora que contribui com textos históricos para o site Smithsonian.com, e autora do livro “Sin in the Second City and American Rose”. Seu próximo título “Liar, Temptress, Soldier, Spy”, será lançado pela editora HarperCollins em setembro.

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É muito interessante notar que o artigo histórico de Karen Abbott aborda questões da luta feminista datadas de mais de cem anos atrás que persistem até os dias de hoje. Mas o mais curioso, é o fato de que se o homem daquela época perdia o controle ao ver um “tornozelo”, ou uma “bochecha maquiada”, talvez hoje em dia aquele mesmo homem não somente tentaria “amassar” ou “encochar” uma mulher dentro do transporte público: Faria ele o mesmo que o sujeito flagrado no ônibus em Vitória fez? Esta pergunta tenta mostrar que tais atitudes masculinas, as de ontem e as de hoje, ainda não conseguem apresentar justificativas para sustentar a possibilidade de que o homem possa realmente perder o controle de sua libido em público. Ele o faz porque decide fazer. E como uma sufragista do início do século 20 poderia hoje nos dizer, “o problema está na mente vil dos ‘acochadores’”.

A contínua perpetuação dos já centenários modelos de gêneros, que ainda hoje são validados e reproduzidos, estaria moldando os padrões de criação e educação dos nossos filhos? Seria o alfinete, então, a única e eterna resposta?

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